quarta-feira, 20 de abril de 2011

O primeiro conto.

Esse é um conto antigo que reescrevi esses dias.

O fim de um trabalho difícil.

A vista noturna da cidade de São Paulo é maravilhosa. Poder observa-la com meu próprio ponto de vista é algo que experimentei por poucas vezes. Apesar da garoa fina e fria que cai, nessa noite de julho, não sofro nenhum prejuízo no espetáculo de cores e luzes, cheiros, sentimentos e pensamentos. Esse é meu premio por mais um trabalho bem feito. Um favor prestado a um homem. Uma família salva da ruina, uma empresa salva da falência e um grande exemplo a ser dado para a sociedade.

Ele gerenciava um setor estratégico de uma operadora de cartões de crédito. Sofreu um grave acidente de carro, após chegar em casa bêbado e furioso por ter demitido metade dos funcionários de um setor. A raiva e o álcool acabaram por inflamar uma grande briga em casa, ele agrediu os filhos e a esposa, saiu de casa dirigindo em alta velocidade e colidiu com um caminhão de quatro eixos. Ele morreria, se nós não tivéssemos interferido. E isso foi ha 20 anos atrás.

Ele ficou gravemente ferido e preso nas ferragens retorcidas e sofreu queimaduras profundas. Um de meus irmãos, o Caçula, acionou a policia, os bombeiros e o resgate. Não existem registros de chamada telefônica para eles, os condutores das viaturas acharam que deveriam passar por aquela rua. Assim chegaram ao ponto do acidente. Coincidência ou conveniência?

Enquanto o resgate vinha com a velocidade da casualidade, os Trigêmeos removeram a Ele de dentro da massa retorcida de ferro e resíduos queimados que eram o resto do seu carro. Feita a remoção os Trigêmeos prestaram os primeiros cuidados e realizaram as primeiras cirurgias ali mesmo. Após os sinais vitais d’Ele estarem mais estáveis, conduziram-no para a Santa Casa de Caridade, onde seria realizado o tratamento e a reabilitação. Nossa Prima cuidaria dos cuidados e da reeducação psicológica e filosófica de nosso “afilhado”

Eu sou o mais velho, responsável pelo inacreditável, assumir as atividades d’Ele e não deixar que sua presença fosse esquecida. Eu sou o agente da mudança, quem mostra o rumo que a vida dele vai tomar e guia o trabalho da minha Prima, para que quando Ele volte ao seu lugar de direito não existam contradições, dúvidas e outras fraquezas similares que seriam indícios de nossa presença. Uma das minhas habilidades mais interessantes é a induzir as pessoas a me enxergarem como eu achar mais adequado, ou a não me enxergarem. Outra habilidade muito conveniente é a de conectar com a mente d’Ele e absorver os traços fundamentais de sua personalidade, além de fornecer a ele todas as lembranças e sensações que eu tenho por ele. Infelizmente nem tudo são flores, enquanto o vinculo for ativo, eu fico desprovido dos sentidos do tato, paladar e olfato. Ou seja, todas as sensações mundanas que fazem os humanos serem humanos não existem pra mim.

Foram vinte anos felizes, Ele mudou sua conduta como pai e marido, fortalecendo a família e propiciando aos filhos um ambiente extremamente saudável para o crescimento e à esposa uma vida conjugal estável, afetuosa e duradoura. Como gerente de uma parte estratégica da empresa inovou sempre que foi necessário, tomando decisões perfeitamente equilibradas e que acabaram por conduzi-lo a um merecido cargo de diretor geral da empresa no Brasil. A história de como escapara ileso de um acidente que deveria ter sido fatal e todo o processo de reflexão e mudança que isso gerou em sua vida, fizeram dele um exemplo de superação. Ele está escrevendo um livro e preparando a defesa de seu segundo doutorado. Um homem incrível de fibra extraordinária. Vinte anos felizes e bem sucedidos. Para Ele.

Pra mim foram vinte anos de intensa meditação e autocontrole. Amei uma mulher que nunca foi minha , gerei filhos que não me conhecem, fiz amigos fieis. E todas as emoções que essas experiências geram, eu assisti de perto e não experimentei alguma. Não fui nada mais do que um “transmissor” do que acontecia enquanto eu vivia a vida d’Ele. Mas por fim, ele ficou totalmente recuperado e pronto pra receber alta.

Os jornais noticiaram uma notícia diferente na manhã de hoje. “Homem ‘anônimo’ que passara vinte anos em coma acorda e some algumas horas depois” e enquanto a Prima o reconduzia a sua casa. Ele havia viajado a trabalho e estava regressando para tirar férias.

Após o espetáculo visual que a cidade de São Paulo sempre proporcionou eu entrei mais uma vez em meu antigo apartamento. Após um banho quente eu me demorei observando um rosto quase estranho pra mim. O meu. Era chegado o fim do meu período de serviço. Depois de três séculos “remendando” alguns buracos ao redor do mundo, eu havia me demitido. Queria saber como é que uma pessoa vive. Mas não deixei de ser quem sou, em essência. Espero que minha demissão seja bem aceita. Senão, começa mais uma brincadeira de gato e rato.

Nenhum comentário:

Postar um comentário