domingo, 17 de julho de 2016

A velha Terra, um novo mundo e mais alguns.


Ano de 3400. A Terra chegou ao limite de sustentabilidade planetária. As áreas não exploradas são o mínimo do mínimo para que o planeta não entre em colapso. O contato com as raças nativas de outros planetas não ocorreu abertamente, apenas pequenas trocas de informações e acordos de não agressão.
A única opção para a continuação da sobrevivência foi a expansão espacial. No início a colonização foi feita em planetas próximos, vênus e marte, mas rapidamente quase todo o sistema solar estava sendo colonizado por diversas empresas. A descoberta de um novo combustível mineral, um cristal instável chamado Suministro.  É um mineral cristalino e altamente radioativo, porém pode ser usado como uma fonte incrível de energia. Sua origem é desconhecida, mas suas minas são situadas em planetas externos dos sistemas solares e que recebem impactos de grandes meteoros.
A sociedade humana prosperou muito desde o início da expansão espacial. O planeta passa por um momento de profunda instabilidade climática, com o planeta sendo varrido por ventos de mais de 200km/h. Quase todas as cidades estão construídas sobre imensas hastes metálicas e são sustentadas por dispositivos magnéticos de flutuação. A zona habitável do planeta começa a ocorrer aproximadamente a 250m do nível do mar. Nessa altitude a radiação da parte mais baixa não é mais sentida em sua totalidade e os ventos são normais. A atmosfera planetária sofreu uma expansão passando de aproximadamente 120km para aproximadamente 250 km. Ainda existe vida selvagem no planeta e a geografia do presente pouco faz sentido. A fauna e flora evoluíram e se adaptaram para sobreviver a um mundo que passou por dois holocaustos nucleares seguidos. Todo o contato das cidades das nuvens com a superfície planetária é feito por meio de drones das mais diversas formas.
Não há mais extração mineral na Terra, todos os minerais são provenientes de minas estelares. O petróleo se extinguiu faz muito tempo. Os países existentes ainda atendem por seus antigos nomes, e detém territórios na superfície com suas extensões atuais, mas a real proporção e os conteúdos dessas áreas ainda não foram definidos com certeza. O processo de estabilização planetária e de terraformação ainda não se encerrou. As maiores altitudes litosféricas são dos picos do Everst e da Cordilheira dos Andes. Estão estudando a possibilidade de construção de postos avançados nesses locais.
A política atual é controlada por super corporações, que dominam as áreas de conhecimento e atividades econômicas. As forças militares são empregadas dessas corporações e apenas defendem os interesses de seus empregadores. Os acordos feitos entre elas estão mantendo a sociedade estável. O conselho planetário não tem poder militar suficiente para combater as corporações. Então ele apenas dialoga e mantém tratados e concessões diversas. Algumas forças dissidentes formam bases na orla exterior no território estelar humano, mas pouco perigo representam.

O único grande mistério do momento é a perda de contato com colônias avançadas no setor estelar de Vega. Os registros de segurança foram severamente comprometidos por interferência eletromagnética, mas os gritos captados no circuito de áudio são do mais puro pavor. Pressionados pelo Conselho Planetário e pelas rivais, as Corporações mandatárias do setor precisam se posicionar sobre o acontecido.
                                                   ***
Este conto é uma introdução ao cenário de RPG Ponto de Fuga, Fronteiras Cósmicas, que estou desenvolvendo no momento.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cronicas da Cabeça Adicional, Reflexões Filosóficas de um Gigante Bicéfalo.


Capítulo 1: Origem e Começo.
Feio. Nenhuma palavra sintetiza mais o que é esse ser. Do alto dos seus seis metros de altura, da pele cinza-mofo e de suas duas cabeças dissonantes. Sim duas cabeças, e digo mais, são cabeças dotadas de personalidades distintas. Agora só não me pergunte como o corpo reage a dois comandos diferentes e simultâneos, sem rasgar-se em dois. Não sou um expert em neuro-anatomia de gigantes bicéfalos.
Nascido em uma tribo de gigantes das montanhas, nunca recebeu um nome próprio, sempre fora tratado como “Duas Cabeças”, “Quatro Olhos” e outros adjetivos menos cavalheirescos. Mas apesar de sua singular aparência, sempre fora tratado com um misto de desconfiança e respeito, afinal era considerado mais inteligente e sagaz do que qualquer gigante daquela região. Afinal, na sabedoria dos gigantes encontramos o seguinte dizer: “duas cabeças sempre pensam melhor do que uma.”.
Porém, nem sempre ser diferente ou considerado intelectualmente superior é uma vantagem. Durante seu rito de passagem para a idade adulta, ele deveria desempenhar alguma tarefa que trouxesse melhoria para sua tribo. Enquanto os outros jovens mostravam o quanto eram bons com caça, pesca, luta, construçãao, dentre outros ofícios masculinos (ao ver dos gigantes, lembre-se). Ele apresentou um longo discurso sobre como dividir as tarefas de maneira mais eficaz, levando em conta a estatura, força física e idde. A ideia não era ruim, mas gigantes são orgulhosos e teimosos, além do mais acreditam que quanto mais velho se é mais forte se fica. E que desempenhar tarefas ditas difíceis ou impossíveis apenas aumenta sua glória. A morte acidental, nesses casos, não passa de um detalhe desimportante.
Resultado, nosso amigo grandão e de duas cabeças foi expulso de casa, acusado de querer justificar sua falta de força e coragem em palavras de falsa sabedoria. Mas nem assim suas personalidades se abateram, afinal, uma das cabeças, a quem a outra chamava de “Outro” era extremamente curiosa e observadora. A outra, que se intitulava “Eu”, era de uma resiliência pétrea e orgulho profundo, logo decidiu encontrar seu lugar nesse mundo.
Viajou durante dias, bebeu em fontes e riachos, comeu frutas silvestres e pescou alguns peixes, afinal Eu gostava mais de peixes, enquanto Outro preferia frutos silvestres.
E assim começava uma viagem de conhecimento e compreensão, descoberta e autodescoberta, ao longo dos reinos e das raças.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Viagem ao fundo do Deserto.

Viagem ao fundo do Deserto.
Hoje eu acordei com varias lembranças eclodindo em minha mente, lembranças das poucas vezes em que eu fui eu mesmo. Já são quase seis milênios transitando por esse mundo, mas são apenas alguns anos, que não totalizam quarenta, que vivi por mim mesmo. Eu sempre era outra pessoa, apenas um agente da “força reguladora do planeta”. Saudade é um conceito novo, mas sinto muita da época em que eu corria de pés descalços pelos recém-iniciados campos de algodão da minha aldeia, tudo era novidade, mas logo eu descobri que minha vida era diferente, que eu era diferente das outras crianças.  O resto da história é comprido demais pra postar via celular, enquanto estou pendurado em uma corda, descendo uma escarpa rochosa rumo a uma cidade que ninguém viu nem sabe o nome.
01 de Novembro de 2007
Depois de quatro dias andando pelo alto do planalto salino do Deserto do Atacama, finalmente visualizo as Grandes Mãos. Quem as construiu não registrou o próprio nome na criação, mas as mãos são perfeitas, feitas de pedra. Eu, do alto dos meus 1,86 de altura, não tenho mais que dois terços da altura da menor falange do dedo mindinho de uma delas. Depois de mais alguns metros ao norte, vejo o precipício. As pessoas ficam pasmas com a perfeição da natureza, que esculpiu com o vento um vale tão profundo e de paredes tão íngremes. Eu reconheço e me admiro do trabalho dos Construtores, que são únicos e capazes de esculpir qualquer coisa com qualquer material, em qualquer estado físico. O contrato feito com eles foi o mais caro que o Clã já pagou. Foi no inicio da nossa degeneração. Foi quando deixamos de ser imparciais e passamos a ser mercenários. O capitalismo foi instituído em meados do século XVIII, mas a ideia de acumular riqueza e obter poder através dela é tão antiga quanto o próprio homem.
A entrada para a cidadela permanece oculta por uma miragem permanente. Aqueles que atravessam a miragem podem vislumbrar a escadaria esculpida no arenito. Mas a escada ruiu no ponto de transição entre o segundo e o terceiro lances de degraus. Então nesse ponto, comecei a escalar. Depois de cerca de uma hora de rapel, encontrei outro ponto de intercessão entre dois lances da escadaria ancestral. Parei pra descansar por alguns minutos. Não havia nenhum sinal de vida por vários e vários metros ao meu redor, apenas a canção do vendo passando pelas fendas do penhasco. Agora vinha a parte difícil, terminar a decida escalando com as mãos nuas, já que minha corda estava no limite e não era conveniente que eu a desprendesse. Ao final da escalada, finalmente meus pés podem tocar o solo.
Aqui é um local mais antigo do que a própria história da humanidade. Quando ainda começávamos a nos organizar em tribos, já haviam seres evoluídos e poderosos vagando pelo mundo. Afinal, fala-se muito que Deus criou a Terra, criou o homem e tudo mais. Mas que disse que apenas Ele havia criado alguma coisa, ou que foi o primeiro a criar. Chamam esse lugar de Cidadela do inicio, pois foi aqui que quatro seres que não faziam parte da criação se reuniram, conversaram e decidiram que não entrariam em guerra com os novos habitantes do planeta, agora chamado Terra. Seus nomes foram esquecidos, mas passaram a ser conhecidos pela natureza de ocupações. Eles eram: o Construtor, o Pensador, o Caçador e o Curandeiro. Chama-los de deuses não seria errado, dado a extensão de seus poderes e de sua sabedoria. Esses quatro resolveram ensinar aos homens seus ofícios. Com o passar do tempo, com os ensinamentos de cada um deles, floresceram civilizações incríveis. Ao longo do tempo, foi inevitável que alguns homens seguissem os quatro, em busca de um aprendizado maior e de alguma espécie de “elevação existencial”.
Pouco tempo depois, os Quatro travaram sua guerra externa particular, contra outros quatro antigos, esses seriam chamados de “Cavaleiros do Apocalipse”, Peste, Guerra, Fome e Morte. Essa foi uma guerra secreta, uma vez que não deixou vestígio algum. Depois de algumas décadas, foi determinada uma trégua e um pacto de não agressão entre os oito. Foi definido um campo de atuação para cada um e uma fortaleza também. Originalmente essa cidadela deveria pertencer ao Construtor e seus seguidores. Mas o Pensador ofereceu a ele influência direta e irrestrita aos quatro maiores impérios humanos no momento, de modo com que ele seria o único dos oito a possuir suas marcas cravadas no planeta, por séculos e séculos a fio. Isso, em troca do acesso exclusivo do Pensador e seus pupilos à Cidadela do Inicio. Assim nasceu nosso clã. Não temos um nome definido, mas brincávamos de nos chamar de “Mãos do destino”.
Isso tudo eu descobri lendo um registro litográfico na câmara interna do Palácio do Pensar, no interior da cidadela. Chegar foi um desafio intenso, mas sem complicações, já que na carta que minha Mãe havia me deixado eu sabia o caminho a ser seguido e as armadilhas a serem desarmadas. O mapa e as instruções eram perfeitas, afinal Memória nunca falha. Era isso que o Pai dizia quando a Mãe voltava de uma de suas missões. Só uma coisa me perturbava, até aquele momento, vagando pelo interior da ruina, eu ainda não sabia o objetivo de minha Mãe e nem as razões que a levaram a me procurar. E sinceramente eu preferia não ter descoberto.
As ruinas da cidadela eram impecavelmente organizadas para parecerem oriundas de uma civilização perdida e era projetada pra esconder as marcas dos acessos periódicos a ela, além das moderníssimas ferramentas de segurança e monitoramento instaladas nela. Aqui desastres naturais nunca teriam causas naturais, mas nenhum grupo de peritos formado por pessoas comuns conseguiria descobrir as causas de um possível acidente. Eu sabia que a cidadela era guardada, mas que eram poucas as sentinelas vivas e/ou conscientes. A maior parte da segurança era feita por câmeras de segurança, alarmes silenciosos, detectores de movimento que acionam “desmoronamentos” e armadilhas mais “rudimentares” como fossos com estacas, pêndulos laminados enormes, setas envenenadas e minas terrestres com explosivos não muito potentes, porém letais. Minha primeira visita na cidadela foi ao quarto nível subterrâneo, por um caminho pouco usado, visando chegar aos geradores de energia. O gerador de energia era incrível, ele usava as aguas do rio subterrâneo que corre muitos metros abaixo do planalto para mover as hélices de um dínamo de alto rendimento. Minha ação foi simples e direta, desligar o aparelho, logo após ter me livrado de duas armadilhas letais. Após a interrupção da energia, eu teria duas horas até que alguém ou alguma coisa restaurasse a energia. Dentro da área central, nem eu passaria despercebido por todos os locais.
Então tratei de correr rumo ao prédio principal da cidade, a residência do meu Avô, o Pensador, pai do meu Pai. Não foi difícil chegar lá seguindo o mapa da minha Mãe, devidamente transcrito para meu pequeno palmtop. Usei novamente minha capacidade de manipular a sinapses nervosas para driblar a visão de quem pudesse tentar me enxergar, criando uma “bolha de proteção”, num raio de 65 metros ao meu redor. Surpreendeu-me notar que a bolha começara a funcionar em poucos minutos, quando dois guardas passaram correndo na minha frente, armados com pistolas tipo Desert Eagle e aparelhos de choque. Felizmente eles usaram o longo caminho principal até o gerador. Fique ainda mais surpreso quando notei um vampiro (filho ou neto da Morte com humanos comuns) espreitando pelas sombras em busca de um possível invasor. Definitivamente, todos os que sabem alguma coisa sobre o Clã, tem dividas com ele, até a Morte. Finalmente, já dentro da residência de meu Avô, e com cerca de setenta minutos até a restauração da força, vi um sentinela quase infalível, imune ao meu controle mental, resistente a dano e provavelmente portador de uma inteligência artificial avançada.  Um golem feito de metal, provavelmente titânio ou alguma liga metálica resistente ao extremo. Não pense naquelas armaduras trôpegas segurando machados que você já deve ter visto em algum filme de fantasia medieval ou desenho animado. Esse golem tinha uma forma humanoide, robusta, nos olhos eram visíveis câmeras gravando em tempo integral e transmitindo a sua visão. Ele fazia sentinela em frente ao portão principal com movimentos precisos e seguros, e pasmem equipado com uma metralhadora giratória daquelas que ficam nos helicópteros militares, acoplada ao braço esquerdo. Tudo isso alimentado pela energia de um espírito elementar ancestral do fogo, preso em algum lugar dentro desse monstro.


Para vencer esse simpático constructo, eu tive que recorrer a algo que nunca gostei de fazer, controle mental direto. Na praça central, havia uma sentinela camuflada em meio aos escombros. Projetei em seu campo de visão a imagem de um homem entrando no palácio. Como era de esperar, ele saiu para interceptar o invasor. Logo em seguida fiz com que a sentinela enxergasse o golem como o invasor e para completar a jogada o invasor derramava agua na cabeça, para refrescar-se. Observando a mente da sentinela, descobri que ele chama-se Arion e era um eletromante, um homem com a capacidade de gerar manipular correntes elétricas. Às vezes homens comuns nascem com habilidades extraordinárias, em virtude de uma herança genética deixada por um ancestral fantástico. Provavelmente Arion era descendente de Djani, um gênio do elemento ar que um dia habitou o Oriente Médio.  O que veio a seguir foi impressionante, o eletromante gerou um relâmpago que atingiu o golem em cheio. Os dispositivos eletrônicos instalados no constructo foram arruinados e ele investiu contra a sentinela. Desfiz a ilusão mental que dominava Arion e deixei que fugisse do golem furioso. Não pude observar a perseguição, apenas vesti meu manto de indiferença e segui para dentro da câmara que guardava toda a história do Clã.
Entrei com cuidado e fechei a porta, trancando-a por dentro. Nossa história estava registrada em placas de pedra, formando um verdadeiro livro rochoso. Estava escrita em um idioma secreto, no qual eu sou fluente. Fiquei muito feliz em ver que fui importante para a consolidação da força dessa organização. Também me impressionei com os prêmios colocados para a minha cabeça. Por fim, guardado em uma gaveta da escrivaninha no canto da sala, achei dois objetos citados por minha Mãe, um livro de anotações bem velho e um notebook. Guardei-os e voltei a analisar o registro litográfico. Vários questionamentos que eu carregava a séculos iam sumindo, ao passo que novos surgiam. O silêncio ao meu redor me deixava relaxado, confiante, esqueci-me do tempo que nunca para.
Então veio a dor. Fui golpeado na cabeça e cai tonto. O golpe fora preciso, não me matou nem me desmaiou e isso foi proposital. Meu agressor queria que eu morresse olhando pra ele. Para mim já não importava, minha cabeça doía e meus músculos estavam dormentes. Eu havia sido drogado. Dois homens e uma mulher entravam na sala usando máscaras contra gás. Após ser chutado no rosto e no estomago, acabei rolando. Não sentia dor e minha consciência vacilava. Vi a granada de gás já vazia parada ao meu lado. Conversavam algo entre eles, mas as palavras chegavam desconexas aos meus ouvidos. E eu pensei ter visto uma cobra branca rondando pela sala, espreitando. Definitivamente eu estava começando a sofrer alucinações. Quando terminaram o diálogo, a mulher e um dos homens saíram da sala. Ao abrirem a porta notei que o local estava repleto de uma névoa branca, o gás alucinógeno e sedativo que me envenenara. Respirei um pouco de ar puro, aliás não tinha citado, mas a Cidadela, apesar de estar em ruinas, é um lugar arejado e agradável, na sombra de um vale perdido no deserto.
O ar puro ajudou a desembaçar minha visão e a sintonizar minha audição. O homem tirou a máscara. Cabelos negros e bem aparados, rosto severo e bem angular (leia-se cara quadrada). Olhos dourados com pupilas verticais e desprovidos de íris. Provavelmente um filho de algum dragão ou algo assim.
_Observador, ouça com atenção. Você foi condenado a morte por traição. Morra em paz. Eu sou um dos vários Executores. Adeus.
Com esse discurso solene, armou-se com uma pistola, verificou se ela estava destravada e eu notei a cobra branca com quatro metros de comprimentos me rodeando. O Executor ficou assustado quando encarou a cobra a apontou a arma para ela. Notei que a cobra aumentou a massa corporal e o comprimento, e como suas escamas brancas com matizes pretas e prateadas eram lindas. Nesse momento a cobra atingiu cerca de dez metros ou mais, enrolou-se em volta do meu corpo, como se quisesse me proteger. Executor disparou uma, duas, dez vezes. Todos os tiros resvalaram na pele da enorme serpente, mas o barulho que eu ouvi foi o de balas ricocheteando em rochas. A serpente branca e o Executor se olhavam nos olhos. Eu agora estava no pior estado de invalidez possível. Consciente do que acontecia a minha volta, com os músculos paralisados, sedado, incapacitado de usar minhas habilidades mentais em virtude da ação do veneno.
A grade cobra branca armou o bote e mostrou as presas. O Executor desembainhou uma grande faca de caça. Ele avançou contra ela e caiu logo em seguida, com a mão no peito. A cobra diminuiu até seu tamanho original. Ouvi passos em minha direção. Um homem que eu nunca  vira aproximou-se e me disse que eu precisava ser medicado. A cobra me mordeu no pulso direito. O mundo escureceu rápido.
Quando acordei, estava deitado em uma cama simples, num quarto pequeno. O cheiro de feijão e pimenta sendo cozidos invadiu minhas narinas. Eu tinha  fome.
_Finalmente você acordou, pensei que fosse dormir para sempre. _Essa voz eu não ouvia há séculos, mas jamais me esqueceria dela. Minha Mãe. Devido ao choque do reencontro e a fraqueza imposta pela enfermidade causada pelo veneno, mais uma vez desfaleci.
E quando acordei...

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Revelações e Dúvidas


Outubro de 2007

Quando se está a 2400 metros acima do nível do mar, algumas coisas bem simples tornam-se extremamente diferenciais. Um exemplo, o oxigênio, que nesse ponto extremo do planeta é bem menos concentrado do que no lugar onde você está agora, sentado lendo essa carta. A umidade extremamente baixa é outro complicador, mas agora não faz calor, são cinco da tarde e a temperatura está amena. Mas em duas horas mais ou menos, ela cairá a 0º C. Agradabilíssimo.

Apesar da paisagem desolada, uma planura de sal até onde a vista alcança, entrecortada por algumas estradas e montanhas ao fundo, eu sempre gostei daqui. Quase não chove, muitas vezes as gotas da chuva evaporam antes de tocar o chão. Mas faz muito tempo que tive aqui. Da ultima vez eu ainda era um adolescente, recém-iniciado na tradição do Clã. Eu e meus pais viemos até aqui, um ponto de encontro com nossos ancestrais que não estão mais ativos. Quando minha Mãe deixou o Clã, eu sempre soube que era nesse deserto que eu a encontraria. Quando vim aqui a primeira vez vi o deserto florir, algo raro que acontece uma vez por século, se muito. Naquela época faziam mil e quatrocentos anos que não chovia.

A pequena cidade de São Pedro do Atacama é bem movimentada. É a cidade mais alta da região e uma das mais elevadas do mundo. Apesar de pequena é o ponto de encontro dos mais variados tipos de pessoas, de mochileiros a motociclistas aventureiros, de astrônomos a ufólogos, de físicos a místicos. A noite sempre tem seus encantos e atrações, mas prefiro procurar por uma velha conhecida, dona de um pequeno boteco em um beco escuro e empoeirado. Nesse ponto as construções são rudimentares, a maioria de barro batido. Andando calmamente eu vejo a placa pendurada “Fim da Linha”. Abro a porta velha, que reclama ruidosamente ao ser movida e uma sineta velha e desafinada badalando e avisando a chegada de mais um cliente, não que houvesse algum.

_Quem me incomoda?_ Ouço uma voz muito aguda e estridente resmungando. _ Você sabe que hora é essa? Seu fedelho maldito, não é educado acordar uma Anciã nessa hora.

_Desculpe meus modos rudes e a chegada inesperada, mas como você mesma me disse que eu era como um neto para você e preciso de um prato de comida e uma cama, pensei que não me negaria isso, Vovó Cassiopéia.

A velha baixinha e carcomida pelo tempo deixa sua carranca mudar para um sorriso alegre, franco e sem muitos dentes. Como eu disse, faz muito tempo desde que estive aqui a ultima vez, se não me engano naquela época estavam começando a construir o simpático Gigante do Atacama.

_Venha cá menino, quero dar uma boa olhada em você, quando te vi pela última vez você ainda cheirava a leite e usava aqueles trajes horríveis feitos com lã de alpaca. _Dizendo isso ela me abraçou e depois acariciou o meu rosto. E é onde menos se espera que se encontra respostas, a sensação de alegria causada pelo reencontro com um ente querido é algo realmente desconhecido pra mim. Gostei dessa descoberta. _Vá tomar um banho enquanto eu preparo uma boa sopa de feijão, carne seca e pimentas pra você.

Relaxar era um luxo distante e exótico pra mim, mas aqui eu poderia fazer isso. Vovó Cassiopéia é a ultima representante das Kinichi-Ahailas, mulheres com capacidade metamórficas, podendo assumir duas ou até três formas diferentes da sua forma original. Para onde suas irmãs foram, ela nunca diz, mas a Vovó atualmente já não assumia mais suas outras formas. A única coisa que ela me disse sobre seu povo é que eram filhos da divindade inca do sol e que ela mora aqui porque se esconde dos “Devoradores” dos quais ela tem se escondido por mais de quatro mil anos.

A água quente lavou mais que a sujeira do meu corpo, levou embora a preocupação da minha mente e finalmente experimentei a sensação de relaxamento completo. Acho que fiquei uns quarenta minutos debaixo do chuveiro, quando finalmente sai e me vesti ouvi o barulho da Vovó na cozinha e ao abrir a porta o cheiro que invadia a casa me fez lembrar de outra coisa, eu tinha fome e muita. O jantar foi silencioso, mas a comida era a mais saborosa que eu já comi. Não falamos durante o jantar, uma vez que qualquer assunto iniciado levaria dias, ou quem sabe muito mais que dias, para ser terminado. Nós dois possuímos nossos modos de obter informações sem a necessidade de diálogo direto. Ao final do jantar, ela me mostrou o quarto onde eu dormiria. Adormeci instantaneamente.

Quando despertei, ouvi uma voz que me enviou diretamente às minhas lembranças mais antigas e doces. Era a voz de minha Mãe. Tentei correr, mas ainda recém desperto, acabei caindo da cama e me enrolando nas cobertas. Quando me livrei daquele casulo felpudo, e abri a porta do quarto ouvi o som de um carro saindo e a voz da Vovó do lado de fora da casa, dizendo, “Boa viagem e boa sorte”.

Quando cheguei a entrada do bar, vi a Vovó limpando o balcão.

_Você dormiu demais, achamos que você estava doente. Sua Mãe ficou ao seu lado por três dos quatro dias em que você dormiu. _Ela informou.

_Eu dormi por quatro dias? Mas como? _Não havia motivo, eu não fico doente.

_Sua mente estava no limite da sanidade, da razão e da lucidez. Nós que podemos viver muitos séculos, sofremos... “ataques” desses males. Você estava muito preocupado. Sua mente estava muito congestionada, muitos questionamentos e preocupações. Isso estava começando a consumir você completamente.

Ao longo da minha extensa vida aprendi a não questionar a sabedoria dos mais velhos, não que restassem muitas pessoas mais velhas que eu nesse mundo. Fiquei refletindo sobre o que a Vovó acabara de dizer, como uma criança que mastiga uma salada meio amarga. Enquanto isso a Vovó procurava alguma coisa dentro de uma gaveta, no balcão do bar. Depois de cinco minutos ela me entregou uma carta sem remetente endereçada a mim e uma caixa, do tamanho de uma caixa de sapatos, embrulhada em um pedaço fino de couro.

_Sua Mãe pediu que eu lhe entregasse isso, meu jovem. Leia a carta antes de abrir a caixa, pois uma explica a outra.

Abri a carta com cuidado e comecei a ler, eu gostaria de ter lido com calma, mas a cada palavra que eu lia, mais curioso eu ficava e mais velocidade a leitura ganhava. Tive que ler a carta quatro vezes. Por fim abri a caixa, retirei a fita de couro que a prendia e removi a tampa. Quase não acreditei no que vi. Dentro da caixa havia uma chave velha de prata polida, algum papel enrolado e uma flauta rudimentar esculpida em osso de alguma coisa. A chave e o papel não me chamaram a atenção em nada. Mas a flauta era um presente que eu tinha feito pra minha Mãe, nem me lembro quando e agora ela havia me devolvido.

Quando examinei o papel enrolado, descobri que na verdade eram duas folhas papel finas. O primeiro era um mapa manuscrito, mas de uma precisão de beleza incríveis. A segunda era um “guia” de como seguir o mapa e desviar de possíveis armadilhas no caminho. A localização desse local foi esquecida por todos, mesmo os membros do clã. A guardiã desse lugar era minha Mãe, chamada Memória. Era hora de conhecer mais segredos e mergulhar mais fundo numa história que a História não registrou.

Próxima parada, Cidadela do Inicio, perdida em algum lugar do deserto.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O primeiro conto.

Esse é um conto antigo que reescrevi esses dias.

O fim de um trabalho difícil.

A vista noturna da cidade de São Paulo é maravilhosa. Poder observa-la com meu próprio ponto de vista é algo que experimentei por poucas vezes. Apesar da garoa fina e fria que cai, nessa noite de julho, não sofro nenhum prejuízo no espetáculo de cores e luzes, cheiros, sentimentos e pensamentos. Esse é meu premio por mais um trabalho bem feito. Um favor prestado a um homem. Uma família salva da ruina, uma empresa salva da falência e um grande exemplo a ser dado para a sociedade.

Ele gerenciava um setor estratégico de uma operadora de cartões de crédito. Sofreu um grave acidente de carro, após chegar em casa bêbado e furioso por ter demitido metade dos funcionários de um setor. A raiva e o álcool acabaram por inflamar uma grande briga em casa, ele agrediu os filhos e a esposa, saiu de casa dirigindo em alta velocidade e colidiu com um caminhão de quatro eixos. Ele morreria, se nós não tivéssemos interferido. E isso foi ha 20 anos atrás.

Ele ficou gravemente ferido e preso nas ferragens retorcidas e sofreu queimaduras profundas. Um de meus irmãos, o Caçula, acionou a policia, os bombeiros e o resgate. Não existem registros de chamada telefônica para eles, os condutores das viaturas acharam que deveriam passar por aquela rua. Assim chegaram ao ponto do acidente. Coincidência ou conveniência?

Enquanto o resgate vinha com a velocidade da casualidade, os Trigêmeos removeram a Ele de dentro da massa retorcida de ferro e resíduos queimados que eram o resto do seu carro. Feita a remoção os Trigêmeos prestaram os primeiros cuidados e realizaram as primeiras cirurgias ali mesmo. Após os sinais vitais d’Ele estarem mais estáveis, conduziram-no para a Santa Casa de Caridade, onde seria realizado o tratamento e a reabilitação. Nossa Prima cuidaria dos cuidados e da reeducação psicológica e filosófica de nosso “afilhado”

Eu sou o mais velho, responsável pelo inacreditável, assumir as atividades d’Ele e não deixar que sua presença fosse esquecida. Eu sou o agente da mudança, quem mostra o rumo que a vida dele vai tomar e guia o trabalho da minha Prima, para que quando Ele volte ao seu lugar de direito não existam contradições, dúvidas e outras fraquezas similares que seriam indícios de nossa presença. Uma das minhas habilidades mais interessantes é a induzir as pessoas a me enxergarem como eu achar mais adequado, ou a não me enxergarem. Outra habilidade muito conveniente é a de conectar com a mente d’Ele e absorver os traços fundamentais de sua personalidade, além de fornecer a ele todas as lembranças e sensações que eu tenho por ele. Infelizmente nem tudo são flores, enquanto o vinculo for ativo, eu fico desprovido dos sentidos do tato, paladar e olfato. Ou seja, todas as sensações mundanas que fazem os humanos serem humanos não existem pra mim.

Foram vinte anos felizes, Ele mudou sua conduta como pai e marido, fortalecendo a família e propiciando aos filhos um ambiente extremamente saudável para o crescimento e à esposa uma vida conjugal estável, afetuosa e duradoura. Como gerente de uma parte estratégica da empresa inovou sempre que foi necessário, tomando decisões perfeitamente equilibradas e que acabaram por conduzi-lo a um merecido cargo de diretor geral da empresa no Brasil. A história de como escapara ileso de um acidente que deveria ter sido fatal e todo o processo de reflexão e mudança que isso gerou em sua vida, fizeram dele um exemplo de superação. Ele está escrevendo um livro e preparando a defesa de seu segundo doutorado. Um homem incrível de fibra extraordinária. Vinte anos felizes e bem sucedidos. Para Ele.

Pra mim foram vinte anos de intensa meditação e autocontrole. Amei uma mulher que nunca foi minha , gerei filhos que não me conhecem, fiz amigos fieis. E todas as emoções que essas experiências geram, eu assisti de perto e não experimentei alguma. Não fui nada mais do que um “transmissor” do que acontecia enquanto eu vivia a vida d’Ele. Mas por fim, ele ficou totalmente recuperado e pronto pra receber alta.

Os jornais noticiaram uma notícia diferente na manhã de hoje. “Homem ‘anônimo’ que passara vinte anos em coma acorda e some algumas horas depois” e enquanto a Prima o reconduzia a sua casa. Ele havia viajado a trabalho e estava regressando para tirar férias.

Após o espetáculo visual que a cidade de São Paulo sempre proporcionou eu entrei mais uma vez em meu antigo apartamento. Após um banho quente eu me demorei observando um rosto quase estranho pra mim. O meu. Era chegado o fim do meu período de serviço. Depois de três séculos “remendando” alguns buracos ao redor do mundo, eu havia me demitido. Queria saber como é que uma pessoa vive. Mas não deixei de ser quem sou, em essência. Espero que minha demissão seja bem aceita. Senão, começa mais uma brincadeira de gato e rato.