segunda-feira, 4 de julho de 2011

Revelações e Dúvidas


Outubro de 2007

Quando se está a 2400 metros acima do nível do mar, algumas coisas bem simples tornam-se extremamente diferenciais. Um exemplo, o oxigênio, que nesse ponto extremo do planeta é bem menos concentrado do que no lugar onde você está agora, sentado lendo essa carta. A umidade extremamente baixa é outro complicador, mas agora não faz calor, são cinco da tarde e a temperatura está amena. Mas em duas horas mais ou menos, ela cairá a 0º C. Agradabilíssimo.

Apesar da paisagem desolada, uma planura de sal até onde a vista alcança, entrecortada por algumas estradas e montanhas ao fundo, eu sempre gostei daqui. Quase não chove, muitas vezes as gotas da chuva evaporam antes de tocar o chão. Mas faz muito tempo que tive aqui. Da ultima vez eu ainda era um adolescente, recém-iniciado na tradição do Clã. Eu e meus pais viemos até aqui, um ponto de encontro com nossos ancestrais que não estão mais ativos. Quando minha Mãe deixou o Clã, eu sempre soube que era nesse deserto que eu a encontraria. Quando vim aqui a primeira vez vi o deserto florir, algo raro que acontece uma vez por século, se muito. Naquela época faziam mil e quatrocentos anos que não chovia.

A pequena cidade de São Pedro do Atacama é bem movimentada. É a cidade mais alta da região e uma das mais elevadas do mundo. Apesar de pequena é o ponto de encontro dos mais variados tipos de pessoas, de mochileiros a motociclistas aventureiros, de astrônomos a ufólogos, de físicos a místicos. A noite sempre tem seus encantos e atrações, mas prefiro procurar por uma velha conhecida, dona de um pequeno boteco em um beco escuro e empoeirado. Nesse ponto as construções são rudimentares, a maioria de barro batido. Andando calmamente eu vejo a placa pendurada “Fim da Linha”. Abro a porta velha, que reclama ruidosamente ao ser movida e uma sineta velha e desafinada badalando e avisando a chegada de mais um cliente, não que houvesse algum.

_Quem me incomoda?_ Ouço uma voz muito aguda e estridente resmungando. _ Você sabe que hora é essa? Seu fedelho maldito, não é educado acordar uma Anciã nessa hora.

_Desculpe meus modos rudes e a chegada inesperada, mas como você mesma me disse que eu era como um neto para você e preciso de um prato de comida e uma cama, pensei que não me negaria isso, Vovó Cassiopéia.

A velha baixinha e carcomida pelo tempo deixa sua carranca mudar para um sorriso alegre, franco e sem muitos dentes. Como eu disse, faz muito tempo desde que estive aqui a ultima vez, se não me engano naquela época estavam começando a construir o simpático Gigante do Atacama.

_Venha cá menino, quero dar uma boa olhada em você, quando te vi pela última vez você ainda cheirava a leite e usava aqueles trajes horríveis feitos com lã de alpaca. _Dizendo isso ela me abraçou e depois acariciou o meu rosto. E é onde menos se espera que se encontra respostas, a sensação de alegria causada pelo reencontro com um ente querido é algo realmente desconhecido pra mim. Gostei dessa descoberta. _Vá tomar um banho enquanto eu preparo uma boa sopa de feijão, carne seca e pimentas pra você.

Relaxar era um luxo distante e exótico pra mim, mas aqui eu poderia fazer isso. Vovó Cassiopéia é a ultima representante das Kinichi-Ahailas, mulheres com capacidade metamórficas, podendo assumir duas ou até três formas diferentes da sua forma original. Para onde suas irmãs foram, ela nunca diz, mas a Vovó atualmente já não assumia mais suas outras formas. A única coisa que ela me disse sobre seu povo é que eram filhos da divindade inca do sol e que ela mora aqui porque se esconde dos “Devoradores” dos quais ela tem se escondido por mais de quatro mil anos.

A água quente lavou mais que a sujeira do meu corpo, levou embora a preocupação da minha mente e finalmente experimentei a sensação de relaxamento completo. Acho que fiquei uns quarenta minutos debaixo do chuveiro, quando finalmente sai e me vesti ouvi o barulho da Vovó na cozinha e ao abrir a porta o cheiro que invadia a casa me fez lembrar de outra coisa, eu tinha fome e muita. O jantar foi silencioso, mas a comida era a mais saborosa que eu já comi. Não falamos durante o jantar, uma vez que qualquer assunto iniciado levaria dias, ou quem sabe muito mais que dias, para ser terminado. Nós dois possuímos nossos modos de obter informações sem a necessidade de diálogo direto. Ao final do jantar, ela me mostrou o quarto onde eu dormiria. Adormeci instantaneamente.

Quando despertei, ouvi uma voz que me enviou diretamente às minhas lembranças mais antigas e doces. Era a voz de minha Mãe. Tentei correr, mas ainda recém desperto, acabei caindo da cama e me enrolando nas cobertas. Quando me livrei daquele casulo felpudo, e abri a porta do quarto ouvi o som de um carro saindo e a voz da Vovó do lado de fora da casa, dizendo, “Boa viagem e boa sorte”.

Quando cheguei a entrada do bar, vi a Vovó limpando o balcão.

_Você dormiu demais, achamos que você estava doente. Sua Mãe ficou ao seu lado por três dos quatro dias em que você dormiu. _Ela informou.

_Eu dormi por quatro dias? Mas como? _Não havia motivo, eu não fico doente.

_Sua mente estava no limite da sanidade, da razão e da lucidez. Nós que podemos viver muitos séculos, sofremos... “ataques” desses males. Você estava muito preocupado. Sua mente estava muito congestionada, muitos questionamentos e preocupações. Isso estava começando a consumir você completamente.

Ao longo da minha extensa vida aprendi a não questionar a sabedoria dos mais velhos, não que restassem muitas pessoas mais velhas que eu nesse mundo. Fiquei refletindo sobre o que a Vovó acabara de dizer, como uma criança que mastiga uma salada meio amarga. Enquanto isso a Vovó procurava alguma coisa dentro de uma gaveta, no balcão do bar. Depois de cinco minutos ela me entregou uma carta sem remetente endereçada a mim e uma caixa, do tamanho de uma caixa de sapatos, embrulhada em um pedaço fino de couro.

_Sua Mãe pediu que eu lhe entregasse isso, meu jovem. Leia a carta antes de abrir a caixa, pois uma explica a outra.

Abri a carta com cuidado e comecei a ler, eu gostaria de ter lido com calma, mas a cada palavra que eu lia, mais curioso eu ficava e mais velocidade a leitura ganhava. Tive que ler a carta quatro vezes. Por fim abri a caixa, retirei a fita de couro que a prendia e removi a tampa. Quase não acreditei no que vi. Dentro da caixa havia uma chave velha de prata polida, algum papel enrolado e uma flauta rudimentar esculpida em osso de alguma coisa. A chave e o papel não me chamaram a atenção em nada. Mas a flauta era um presente que eu tinha feito pra minha Mãe, nem me lembro quando e agora ela havia me devolvido.

Quando examinei o papel enrolado, descobri que na verdade eram duas folhas papel finas. O primeiro era um mapa manuscrito, mas de uma precisão de beleza incríveis. A segunda era um “guia” de como seguir o mapa e desviar de possíveis armadilhas no caminho. A localização desse local foi esquecida por todos, mesmo os membros do clã. A guardiã desse lugar era minha Mãe, chamada Memória. Era hora de conhecer mais segredos e mergulhar mais fundo numa história que a História não registrou.

Próxima parada, Cidadela do Inicio, perdida em algum lugar do deserto.

Um comentário:

  1. Sério Rafael, é muito gostoso ler tua escrita, é algo fino que escorre leve pelos olhos tanto que quando se percebe já chegou o fim. Vai ser muito bom acompanhar esse mapa, essa história que a história nao registrou.Muito boa a continuação.
    Espero mais...
    Abraços!

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