quinta-feira, 21 de julho de 2011

Viagem ao fundo do Deserto.

Viagem ao fundo do Deserto.
Hoje eu acordei com varias lembranças eclodindo em minha mente, lembranças das poucas vezes em que eu fui eu mesmo. Já são quase seis milênios transitando por esse mundo, mas são apenas alguns anos, que não totalizam quarenta, que vivi por mim mesmo. Eu sempre era outra pessoa, apenas um agente da “força reguladora do planeta”. Saudade é um conceito novo, mas sinto muita da época em que eu corria de pés descalços pelos recém-iniciados campos de algodão da minha aldeia, tudo era novidade, mas logo eu descobri que minha vida era diferente, que eu era diferente das outras crianças.  O resto da história é comprido demais pra postar via celular, enquanto estou pendurado em uma corda, descendo uma escarpa rochosa rumo a uma cidade que ninguém viu nem sabe o nome.
01 de Novembro de 2007
Depois de quatro dias andando pelo alto do planalto salino do Deserto do Atacama, finalmente visualizo as Grandes Mãos. Quem as construiu não registrou o próprio nome na criação, mas as mãos são perfeitas, feitas de pedra. Eu, do alto dos meus 1,86 de altura, não tenho mais que dois terços da altura da menor falange do dedo mindinho de uma delas. Depois de mais alguns metros ao norte, vejo o precipício. As pessoas ficam pasmas com a perfeição da natureza, que esculpiu com o vento um vale tão profundo e de paredes tão íngremes. Eu reconheço e me admiro do trabalho dos Construtores, que são únicos e capazes de esculpir qualquer coisa com qualquer material, em qualquer estado físico. O contrato feito com eles foi o mais caro que o Clã já pagou. Foi no inicio da nossa degeneração. Foi quando deixamos de ser imparciais e passamos a ser mercenários. O capitalismo foi instituído em meados do século XVIII, mas a ideia de acumular riqueza e obter poder através dela é tão antiga quanto o próprio homem.
A entrada para a cidadela permanece oculta por uma miragem permanente. Aqueles que atravessam a miragem podem vislumbrar a escadaria esculpida no arenito. Mas a escada ruiu no ponto de transição entre o segundo e o terceiro lances de degraus. Então nesse ponto, comecei a escalar. Depois de cerca de uma hora de rapel, encontrei outro ponto de intercessão entre dois lances da escadaria ancestral. Parei pra descansar por alguns minutos. Não havia nenhum sinal de vida por vários e vários metros ao meu redor, apenas a canção do vendo passando pelas fendas do penhasco. Agora vinha a parte difícil, terminar a decida escalando com as mãos nuas, já que minha corda estava no limite e não era conveniente que eu a desprendesse. Ao final da escalada, finalmente meus pés podem tocar o solo.
Aqui é um local mais antigo do que a própria história da humanidade. Quando ainda começávamos a nos organizar em tribos, já haviam seres evoluídos e poderosos vagando pelo mundo. Afinal, fala-se muito que Deus criou a Terra, criou o homem e tudo mais. Mas que disse que apenas Ele havia criado alguma coisa, ou que foi o primeiro a criar. Chamam esse lugar de Cidadela do inicio, pois foi aqui que quatro seres que não faziam parte da criação se reuniram, conversaram e decidiram que não entrariam em guerra com os novos habitantes do planeta, agora chamado Terra. Seus nomes foram esquecidos, mas passaram a ser conhecidos pela natureza de ocupações. Eles eram: o Construtor, o Pensador, o Caçador e o Curandeiro. Chama-los de deuses não seria errado, dado a extensão de seus poderes e de sua sabedoria. Esses quatro resolveram ensinar aos homens seus ofícios. Com o passar do tempo, com os ensinamentos de cada um deles, floresceram civilizações incríveis. Ao longo do tempo, foi inevitável que alguns homens seguissem os quatro, em busca de um aprendizado maior e de alguma espécie de “elevação existencial”.
Pouco tempo depois, os Quatro travaram sua guerra externa particular, contra outros quatro antigos, esses seriam chamados de “Cavaleiros do Apocalipse”, Peste, Guerra, Fome e Morte. Essa foi uma guerra secreta, uma vez que não deixou vestígio algum. Depois de algumas décadas, foi determinada uma trégua e um pacto de não agressão entre os oito. Foi definido um campo de atuação para cada um e uma fortaleza também. Originalmente essa cidadela deveria pertencer ao Construtor e seus seguidores. Mas o Pensador ofereceu a ele influência direta e irrestrita aos quatro maiores impérios humanos no momento, de modo com que ele seria o único dos oito a possuir suas marcas cravadas no planeta, por séculos e séculos a fio. Isso, em troca do acesso exclusivo do Pensador e seus pupilos à Cidadela do Inicio. Assim nasceu nosso clã. Não temos um nome definido, mas brincávamos de nos chamar de “Mãos do destino”.
Isso tudo eu descobri lendo um registro litográfico na câmara interna do Palácio do Pensar, no interior da cidadela. Chegar foi um desafio intenso, mas sem complicações, já que na carta que minha Mãe havia me deixado eu sabia o caminho a ser seguido e as armadilhas a serem desarmadas. O mapa e as instruções eram perfeitas, afinal Memória nunca falha. Era isso que o Pai dizia quando a Mãe voltava de uma de suas missões. Só uma coisa me perturbava, até aquele momento, vagando pelo interior da ruina, eu ainda não sabia o objetivo de minha Mãe e nem as razões que a levaram a me procurar. E sinceramente eu preferia não ter descoberto.
As ruinas da cidadela eram impecavelmente organizadas para parecerem oriundas de uma civilização perdida e era projetada pra esconder as marcas dos acessos periódicos a ela, além das moderníssimas ferramentas de segurança e monitoramento instaladas nela. Aqui desastres naturais nunca teriam causas naturais, mas nenhum grupo de peritos formado por pessoas comuns conseguiria descobrir as causas de um possível acidente. Eu sabia que a cidadela era guardada, mas que eram poucas as sentinelas vivas e/ou conscientes. A maior parte da segurança era feita por câmeras de segurança, alarmes silenciosos, detectores de movimento que acionam “desmoronamentos” e armadilhas mais “rudimentares” como fossos com estacas, pêndulos laminados enormes, setas envenenadas e minas terrestres com explosivos não muito potentes, porém letais. Minha primeira visita na cidadela foi ao quarto nível subterrâneo, por um caminho pouco usado, visando chegar aos geradores de energia. O gerador de energia era incrível, ele usava as aguas do rio subterrâneo que corre muitos metros abaixo do planalto para mover as hélices de um dínamo de alto rendimento. Minha ação foi simples e direta, desligar o aparelho, logo após ter me livrado de duas armadilhas letais. Após a interrupção da energia, eu teria duas horas até que alguém ou alguma coisa restaurasse a energia. Dentro da área central, nem eu passaria despercebido por todos os locais.
Então tratei de correr rumo ao prédio principal da cidade, a residência do meu Avô, o Pensador, pai do meu Pai. Não foi difícil chegar lá seguindo o mapa da minha Mãe, devidamente transcrito para meu pequeno palmtop. Usei novamente minha capacidade de manipular a sinapses nervosas para driblar a visão de quem pudesse tentar me enxergar, criando uma “bolha de proteção”, num raio de 65 metros ao meu redor. Surpreendeu-me notar que a bolha começara a funcionar em poucos minutos, quando dois guardas passaram correndo na minha frente, armados com pistolas tipo Desert Eagle e aparelhos de choque. Felizmente eles usaram o longo caminho principal até o gerador. Fique ainda mais surpreso quando notei um vampiro (filho ou neto da Morte com humanos comuns) espreitando pelas sombras em busca de um possível invasor. Definitivamente, todos os que sabem alguma coisa sobre o Clã, tem dividas com ele, até a Morte. Finalmente, já dentro da residência de meu Avô, e com cerca de setenta minutos até a restauração da força, vi um sentinela quase infalível, imune ao meu controle mental, resistente a dano e provavelmente portador de uma inteligência artificial avançada.  Um golem feito de metal, provavelmente titânio ou alguma liga metálica resistente ao extremo. Não pense naquelas armaduras trôpegas segurando machados que você já deve ter visto em algum filme de fantasia medieval ou desenho animado. Esse golem tinha uma forma humanoide, robusta, nos olhos eram visíveis câmeras gravando em tempo integral e transmitindo a sua visão. Ele fazia sentinela em frente ao portão principal com movimentos precisos e seguros, e pasmem equipado com uma metralhadora giratória daquelas que ficam nos helicópteros militares, acoplada ao braço esquerdo. Tudo isso alimentado pela energia de um espírito elementar ancestral do fogo, preso em algum lugar dentro desse monstro.


Para vencer esse simpático constructo, eu tive que recorrer a algo que nunca gostei de fazer, controle mental direto. Na praça central, havia uma sentinela camuflada em meio aos escombros. Projetei em seu campo de visão a imagem de um homem entrando no palácio. Como era de esperar, ele saiu para interceptar o invasor. Logo em seguida fiz com que a sentinela enxergasse o golem como o invasor e para completar a jogada o invasor derramava agua na cabeça, para refrescar-se. Observando a mente da sentinela, descobri que ele chama-se Arion e era um eletromante, um homem com a capacidade de gerar manipular correntes elétricas. Às vezes homens comuns nascem com habilidades extraordinárias, em virtude de uma herança genética deixada por um ancestral fantástico. Provavelmente Arion era descendente de Djani, um gênio do elemento ar que um dia habitou o Oriente Médio.  O que veio a seguir foi impressionante, o eletromante gerou um relâmpago que atingiu o golem em cheio. Os dispositivos eletrônicos instalados no constructo foram arruinados e ele investiu contra a sentinela. Desfiz a ilusão mental que dominava Arion e deixei que fugisse do golem furioso. Não pude observar a perseguição, apenas vesti meu manto de indiferença e segui para dentro da câmara que guardava toda a história do Clã.
Entrei com cuidado e fechei a porta, trancando-a por dentro. Nossa história estava registrada em placas de pedra, formando um verdadeiro livro rochoso. Estava escrita em um idioma secreto, no qual eu sou fluente. Fiquei muito feliz em ver que fui importante para a consolidação da força dessa organização. Também me impressionei com os prêmios colocados para a minha cabeça. Por fim, guardado em uma gaveta da escrivaninha no canto da sala, achei dois objetos citados por minha Mãe, um livro de anotações bem velho e um notebook. Guardei-os e voltei a analisar o registro litográfico. Vários questionamentos que eu carregava a séculos iam sumindo, ao passo que novos surgiam. O silêncio ao meu redor me deixava relaxado, confiante, esqueci-me do tempo que nunca para.
Então veio a dor. Fui golpeado na cabeça e cai tonto. O golpe fora preciso, não me matou nem me desmaiou e isso foi proposital. Meu agressor queria que eu morresse olhando pra ele. Para mim já não importava, minha cabeça doía e meus músculos estavam dormentes. Eu havia sido drogado. Dois homens e uma mulher entravam na sala usando máscaras contra gás. Após ser chutado no rosto e no estomago, acabei rolando. Não sentia dor e minha consciência vacilava. Vi a granada de gás já vazia parada ao meu lado. Conversavam algo entre eles, mas as palavras chegavam desconexas aos meus ouvidos. E eu pensei ter visto uma cobra branca rondando pela sala, espreitando. Definitivamente eu estava começando a sofrer alucinações. Quando terminaram o diálogo, a mulher e um dos homens saíram da sala. Ao abrirem a porta notei que o local estava repleto de uma névoa branca, o gás alucinógeno e sedativo que me envenenara. Respirei um pouco de ar puro, aliás não tinha citado, mas a Cidadela, apesar de estar em ruinas, é um lugar arejado e agradável, na sombra de um vale perdido no deserto.
O ar puro ajudou a desembaçar minha visão e a sintonizar minha audição. O homem tirou a máscara. Cabelos negros e bem aparados, rosto severo e bem angular (leia-se cara quadrada). Olhos dourados com pupilas verticais e desprovidos de íris. Provavelmente um filho de algum dragão ou algo assim.
_Observador, ouça com atenção. Você foi condenado a morte por traição. Morra em paz. Eu sou um dos vários Executores. Adeus.
Com esse discurso solene, armou-se com uma pistola, verificou se ela estava destravada e eu notei a cobra branca com quatro metros de comprimentos me rodeando. O Executor ficou assustado quando encarou a cobra a apontou a arma para ela. Notei que a cobra aumentou a massa corporal e o comprimento, e como suas escamas brancas com matizes pretas e prateadas eram lindas. Nesse momento a cobra atingiu cerca de dez metros ou mais, enrolou-se em volta do meu corpo, como se quisesse me proteger. Executor disparou uma, duas, dez vezes. Todos os tiros resvalaram na pele da enorme serpente, mas o barulho que eu ouvi foi o de balas ricocheteando em rochas. A serpente branca e o Executor se olhavam nos olhos. Eu agora estava no pior estado de invalidez possível. Consciente do que acontecia a minha volta, com os músculos paralisados, sedado, incapacitado de usar minhas habilidades mentais em virtude da ação do veneno.
A grade cobra branca armou o bote e mostrou as presas. O Executor desembainhou uma grande faca de caça. Ele avançou contra ela e caiu logo em seguida, com a mão no peito. A cobra diminuiu até seu tamanho original. Ouvi passos em minha direção. Um homem que eu nunca  vira aproximou-se e me disse que eu precisava ser medicado. A cobra me mordeu no pulso direito. O mundo escureceu rápido.
Quando acordei, estava deitado em uma cama simples, num quarto pequeno. O cheiro de feijão e pimenta sendo cozidos invadiu minhas narinas. Eu tinha  fome.
_Finalmente você acordou, pensei que fosse dormir para sempre. _Essa voz eu não ouvia há séculos, mas jamais me esqueceria dela. Minha Mãe. Devido ao choque do reencontro e a fraqueza imposta pela enfermidade causada pelo veneno, mais uma vez desfaleci.
E quando acordei...

Nenhum comentário:

Postar um comentário